sexta-feira, 11 de julho de 2014

prodígio

Morávamos num prédio pequeno, 3 andares e no geral com muitos
estudantes. Meus pais eram jovens, faziam faculdade de manhã e
trabalhavam de tarde. Foi naquele condomínio que eu conheci dona Malu .
Diferente dos estudantes, Malu tinha uns 40 anos e era sueca. Parecia
uma daquelas mulheres-senhoras de cinema, era loira, um loiro platinado,
muito branca e bonita. Eu tinha só 7 anos, mas já nessa época acho que
eu era apaixonado por ela. Malu tinha uma mania muito engraçada, não sei
se da cultura dela ou gosto pessoal: ela adorava preparar pães. Havia
uma máquina verde esquisita na cozinha dela e que ajudava a preparar
massas. Ela saía distribuindo o exagero de comida que fazia para os
vizinhos, inclusive nós. Eu a visitava todo dia depois da escola para
pegar um pouco de pão e ficar com ela conversando. Ela exalava um cheiro
bom de alecrim nas mãos, já que sempre colocava essa erva na massa.
Apesar de falar muito com ela, confesso que eu não tinha menor ideia de
qual a profissão de dona Malu, se existia algum marido, se havia
constituído família, se era solteira ou desempregada. Na minha lógica
infantil ela vivia para me fazer feliz com aquele cheiro, um grande
sorriso perolado e aquela brisa de cabelo dourado. Quando eram seis
horas eu voltava para casa com cestas cheias de pães e biscoitos feitos
por ela. Um dia quando papai e mamãe estavam na sala de nossa casa eles
me disseram que dona Malu estava muito doente (fofoca do porteiro do
prédio). Perguntei se ela iria morrer. E papai fazendo cara de
desconcertado: "claro que não, ela é forte ... mas não fique tanto indo
à casa dela, ela precisa descansar" . Bem, claro que negligenciei esse
conselho paterno. Além de ir todo dia , passava horas com ela. Malu
contava histórias da infância na Suécia e acho que contos folclóricos de
lá também. Ela não parecia doente nos meses que se passaram. O que notei
depois é que os cabelos dela estavam mais ralos e o fios branco-dourados
se extinguiam. Isso se confirmou quando eu trouxe o cesto de pães para
casa e minha mãe comeu um e gritou cuspindo: "Esse pão está cheio de
cabelo! A mulher com câncer, fazendo quimioterapia e não se importa nem
em colocar uma touca quando prepara a comida". Logo em seguida minha mãe
despejou todos os pães no lixo e disse que eu não comesse mais os pães
de dona Malu: se ela oferecesse eu deveria recusar ou, caso ela
insistisse, que eu trouxesse uma cesta com as guloseimas, mas que eu
deveria jogar imediatamente fora... Fiquei chocado. Eu adorava aqueles
pães, adorava dona Malu e os seus cabelos . Não seria mais maravilhoso
ainda comer aquilo que eu achava mais bonito nela? aquele cabelo que
parecia um onda de ouro a recender alecrim? Foi assim que começaram meus
problemas. Continuei indo para casa de Dona Malu, dessa vez tendo o
cuidado de, na volta para casa, comer todos os pães do cesto no corredor
ou escadaria do prédio. Eram muitos e muito gostosos: empanturrava-me
sozinho e depressa para que ninguém me visse. Com o tempo eu engordava e
virava uma bolinha. Mas, na minha mente, eu não podia fazer uma desfeita
para dona Malu jogando na lixeira. Aqueles pães eram Ela, tinham a parte
dourada dela! Ela talvez morresse e eu ficaria com o consolo que
houvesse algo daquela mulher dentro de mim.

Apesar de guardar bem meu segredo, minha mãe e meu pai se preocupavam
com um efeito colateral que eu não podia esconder: eu engordava a olhos
vistos. Meu pai dizia: "Vamos levá-lo ao nutricionista, a um médico".
Mas eles discutiam isso da boca para fora: sendo a jornada tripla de
estudantes, trabalhadores e pais, acontecia de negligenciarem o último
ofício com frequência, pois não tinham tempo. Sei que em alguns semanas
passei a ter dores de barriga frequentes. Mamãe vivia me dando
anti-ácido até que tive um crise muito forte e tive que ir a uma
emergência. Me fizeram vomitar no hospital. Chorei copiosamente: lá
estava uma parte de dona Malu semidigerida entre o verde e o dourado.
Era ela em mim e... Tomaram-me. Agora ela morreria de todo. Sem o mínimo
de perpetuidade em meu ventre. Estava tudo perdido.

Meu pais deduziram o acontecido pela cor do cabelo. Eu ainda frequentava
e comia os pães de dona Malu. Para minha surpresa eles não brigaram
comigo, mas eles resolveram que eu deveria morar um tempo na casa dos
meus avós. Meus pai falaram que eu estava muito envolvido e triste com
dona Malu, etc. e que era o melhor para mim. Fiquei com raiva deles .
Não queria ir. Não me deixaram nem me despedir de dona Malu. Passei a
escrever cartinhas toscas com minhas letras recém aprendidas para Malu
explicando que gostava muito dela, dos pães dela , e que não acreditasse
no que meu pais diziam sobre eu ter ficado doente. Eu escrevia a
cartinha e ia nos Correios da esquina. Eu podia dar aos meus pais minhas
cartas para entregar logo para a destinatária, inclusive dei algumas
quando comecei a escrever, mas Malu nunca respondia de volta. Passei a
desconfiar que meus pais interceptavam os meus escritos para ela. Assim,
passei a colocar as cartas nos Correios, obviamente sem CEP e sem
endereço, já que naquela época eu não tinha ideia de como funcionava o
sistema postal. Soube depois pelos meus pais que dona Malu havia
falecido devido ao câncer. Não me permitiram ir ao enterro e fui aprovado com
louvor na alfabetização por escrever tão bem .