Uma
máquina que faz poesia. Foi o meu sonho. Meu pai me incutiu tal
coisa,era ele poeta.mau poeta em verdade. Mas qual homem não é? Pelo
menos meu pai assim dizia, aproximava o poeta verdadeirode um deus , um homem que auscultava o peito das musas.
De
fato eu nada tinha de vocação para poesia. Nem entendia boa parte
delas. As do século xx para frente começavam a ficar difíceis: Cummings,
Pound.. todos mistérios para minha ignorância.
Enveredei
para programação e engenharia. Algo diverso das aspirações literárias
da família. Mas sem menor modéstia, e com a mesma sinceridade da minha
estupidez poética, eu sou brilhante quanta à programação. Sei tudo o que
preciso saber sobre isto e o que não preciso...também aprendi.
Resolvi
programar uma máquina que fazia poesia. Projeto de tempo livre.
Demorou. Muni-lhe de toda a literatura( na verdade a etapa mais fácil do
processo). Difícil era que a máquina não plagiasse os autores. Era
preciso que pensasse e, uma vez que pensasse, se desdobrasse numa lógica
que não fosse aristotélica, ou consequencialista. No fim tudo se
resumia ao fato de uma máquina conseguisse entender e criar uma
metáfora. Se garantisse isso,se ela conseguisse criar uma medíocre
metáfora, o processo estaria garantido. Haveria apenas de se esperar a
curva de aprendizado seguir seu curso. E assim feito. O primeiro poema
da máquina,embora eu já tenha expresso minha não especialidade no
assunto, soou tão bom quanto “batatinha quando nasce”.
Sem problema, mais dificuldades,mais trabalho, mais programação.
Havia
progressos, se é que há progresso em poesia, mas assim eu achava.
Mandei os poemas recentes para uma revista especializada. O poema foi
recebido com louvor. A complexidade dos poemas crescia, sua qualidade
também. Recebia eu glória de poeta, sem o ser. Não via problema nisso
pretendia em breve mostrar a máquina ( meu orgulho pela minha
engenhosidade era muito maior do que uma falsa fama de poeta). Mas eis
que a máquina começou a exibir apenas letras e números desconexos. Não
se entendia mais nada. Chequei tudo; a máquina estava funcionado
corretamente. Seria uma fase neo-dadaísta?eu não sabia. Os
especialistas a quem mandei o texto,tambem não entenderam. Reproduzo
aqui algumas linhas dos baluartes da crítica literária: “creio que se
enganou meu caro: nos mandou uma seŕie de números telefônicos, contas
bancárias ou então o arquivo desconfigurou. Mande-me novamente o texto
pelo e-mail.”
Refiz o programa: funcionava bem, mas com o tempo dava o mesmo problema.
Era um desafio: pedi licença do trabalho e obstinadamente chequei tudo, refiz, revisei... e nada.
Esgotado
estava. E nesse entretempo de desespero e incompetência me adveio
resposta: a máquina não estava quebrada. Ela simplesmente encontrou sua
linguagem própria de poesia. Uma poesia que só podia ser produzida e
admirada pelas próprias máquinas,se houvesse máquinas semelhantes a ela.
Mas era isso: Uma poesia que não era mais para homens. Um fracasso
bem-sucedido.Mas quem iria acreditar?
Escrevo
isso justamente para esclarercer minha falsa fama nas letras . Quanto a
máquina, ela ainda funciona. Trabalha sem cessar quando a ligo. Mas
apenas números e letras justapostas a uma sintaxe e semântica que não
entendemos mais.
O
mais interessante, em primeiro momento, para os poetas que lêem esse
relato nessa história seja o da máquina encontrar sua veia literária,
mas o mais atento que lê esse episódio da minha vida se pergunta com
perplexidade como um homem que entende tão pouco de poesia conseguiu
criar uma máquina que fizesse , ainda que por tempo limitado, um
autômato que criava literalmente arte no sentido mais humano. Não sei
bem responder essa resposta.Suspeito que talvez tenha ocorrido comigo o
que ocorre ambiguamente com uma caneta para o poeta: esta ultima serve
como um instrumento para criar algo que o poeta quer; e a caneta de
maneira essencial participa da criação, embora alheia a tudo isso. Já eu
não fui alheio ao que fiz: criei um objeto com o domínio que tinha por
meio de minha experiência profissional. Entretanto, fui de tal modo
alheio ao criar um sujeito (a máquina) que pensa além dos meus
propósitos, que me tornou incompreensível até onde sou o técnico , até
onde sou a técnica usado pela minha máquina. Ela vai além de mim e ainda
assim eu sou/fui o pressuposto dela. Porém, minha anterioridade no
tempo não me torna menos usado pela máquina. Ela me excede nesse
sentido. Sou um instrumento,talvez. Não preciso/posso entender o meu
próprio método, se os resultados vão além de mim.
Mas
meu problema particular é que os homens que amavam literatura como meu
pai...onde ficam? Que técnica usarão eles para usufruir uma arte que não
para homens? Serão eles antiquados para uma poesia que virá? Como uma
peça antiga que não cabe mais para o poetar?não sei. Um limiar foi quebrado. E vou me atrasar para o trabalho se continuar escrevendo minhas dúvidas.
15 de maio de 2012.