segunda-feira, 17 de junho de 2013

annus mirabilis



Atrasado, sempre atrasado. Hoje não poderia ele estar mais atrasado. sabia onde deveria ir , mas nada havia preparado para sua apresentação. Giovanni Kairos, o grande vagabundo do departamento de física. Por mais que os esforços , as noites de insônia e as horas de almoço canceladas, o estudo de Kairos pouco valeria estando incompleto. Estava resoluto o rapaz:  haveria de dar descarga na privada as poucas páginas escritas e dar um tiro na cabeça. Sua incompetência era derivada não só de sua lentidão , mas , porque não, da sua burrice.
Ao entrar no banheiro, Kairos, para sua surpresa, encontra uma sala em branco . Onde raio estaria a privada, o chuveiro e todo o azulejo rosa terrivelmente feio daquele seu “apertamento” alugado? nada mais se encontrava lá,apenas um espaço que era enorme, muito longe daquele 5x5m de banheiro cheio de baratas. Não se via o fim da sala , e nem havia horizonte para quantificar a distância. Tudo era só branco e nada mais.
Na entrada da porta apenas uma inscrição sumária em pedra “annus mirabilis”. Giovanni se perdeu temporariamente no espanto e na curiosidade, esqueceu até do suicídio programado. E lá foi o rapaz explorar o local durante um bom tempo. Não encontrou um limite para a sala ou uma parede: o único local determinado era o chão branco e aquela porta com a inscrição latina. Bom , talvez estivesse sonhando, talvez fosse uma ilusão . Não sabia ao certo.  Giovanni fechou a porta e deixou para lá. Já devia estar muitíssimo mais atrasado com essa inesperada exploração imobiliária. na volta do trabalho resolveria este problema. Porém, ao sair do cômodo branco, eis sua surpresa que o horário que havia saído era o mesmo ao que havia entrado. Deveria estar pelo menos umas duas horas atrasado e em verdade nada havia passado. Giovanni ficou intrigado: resolvera então ficar 20 minutos  a mais nessa sala em branco para ver se suas suspeitas se concretizavam. fechou a porta, se sentou e logo se deixou embalar pelo sono sem querer. Ao acordar assustado , não sabia quanto tempo havia passado, saiu da “sala nova” e percebeu que de fato tudo continuava igual. alguns poucos segundos haviam passado a despeito de ter dormido com certeza algumas horas. Giovanni percebeu que ganhou na loteria : havia de ter tempo naquela sala de escrever seu artigo. Colocou sua escrivaninha, livros e laptop para dentro do ambiente atemporal e escreveu durante dias. Uma coisa que percebeu é que não sentia fome, nem sede, nem mesmo o sentimento de solidão . Era uma máquina. Uma produtividade estupidamente assustadora, apenas precisava deitar de vez em quando, mas provalvemente por hábito do que por necessidade. 
Terminou o artigo , mas ainda era pouco frente a oportunidade de um local onde o tempo não  passa: queria mais . Pegou todos os livros da sua biblioteca, e-books, arquivos em PDF e colocou a lê-los, relê-los  até decorá-los. Depois disso produziu uma dezena de artigos e coleção de livros de cunho inovador. Bem deveria ter passado uns três séculos se fosse o tempo corrente , mas ali não passava de um átimo de segundo.
Pronto! C’est fini! A contribuição de Giovanni Kairos e o próprio Giovanni Kairos haviam revolucionado o mundo e sua vida: um gênio foi formado . Podia ir agora ao departamento de pesquisa e mostrar à todos o que havia feito. Saiu,enfim, da sala branca . Foi trocar de roupa e comer algo calmamente, apesar do atraso do trabalho.  Afinal, após todo o seu estudo e resultado escusariam qualquer falta ou demora frente a um departamento de pesquisa tacanho.
 Faltava apenas escovar os dentes e ir ao banheiro... e eis que ao abrir a porta estava de fato lá só o banheiro! A sala branca havia sumido junto com seus livros , trabalhos e laptop. Giovanni fechou e abriu a porta várias vezes , mas nada: apenas o banheiro de azulejo rosa e a escova de dentes largada na pia...    
Escovando os dentes lembrou Giovanni com ironia de uma passagem “ Que sou eu, afinal? Carne, fraco alento, e alma. Deixa os livros, não te disperseis” de Marco Aurélio. De mais um dos livros que havia lido  na sala e que se perdeu junto àqueles “anos maravilhosos” . Demitiu-se no mesmo dia e foi vender coco na praia.
21.10.2011

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