Atrasado,
sempre atrasado. Hoje não poderia ele estar mais atrasado. sabia onde
deveria ir , mas nada havia preparado para sua apresentação. Giovanni
Kairos, o grande vagabundo do departamento de física. Por mais que os
esforços , as noites de insônia e as horas de almoço canceladas, o
estudo de Kairos pouco valeria estando incompleto. Estava resoluto o
rapaz: haveria de dar descarga na privada as poucas páginas escritas e
dar um tiro na cabeça. Sua incompetência era derivada não só de sua
lentidão , mas , porque não, da sua burrice.
Ao
entrar no banheiro, Kairos, para sua surpresa, encontra uma sala em
branco . Onde raio estaria a privada, o chuveiro e todo o azulejo rosa
terrivelmente feio daquele seu “apertamento” alugado? nada mais se
encontrava lá,apenas um espaço que era enorme, muito longe daquele 5x5m
de banheiro cheio de baratas. Não se via o fim da sala , e nem havia
horizonte para quantificar a distância. Tudo era só branco e nada mais.
Na entrada da porta apenas uma inscrição sumária em pedra “annus mirabilis”. Giovanni
se perdeu temporariamente no espanto e na curiosidade, esqueceu até do
suicídio programado. E lá foi o rapaz explorar o local durante um bom
tempo. Não encontrou um limite para a sala ou uma parede: o único local
determinado era o chão branco e aquela porta com a inscrição latina. Bom
, talvez estivesse sonhando, talvez fosse uma ilusão . Não sabia ao
certo. Giovanni fechou a porta e deixou para lá. Já devia estar
muitíssimo mais atrasado com essa inesperada exploração imobiliária.
na volta do trabalho resolveria este problema. Porém, ao sair do cômodo
branco, eis sua surpresa que o horário que havia saído era o mesmo ao
que havia entrado. Deveria estar pelo menos umas duas horas atrasado e
em verdade nada havia passado. Giovanni ficou intrigado: resolvera então
ficar 20 minutos a mais nessa sala em branco para ver se suas
suspeitas se concretizavam. fechou a porta, se sentou e logo se deixou
embalar pelo sono sem querer. Ao acordar assustado , não sabia quanto
tempo havia passado, saiu da “sala nova” e percebeu que de fato tudo
continuava igual. alguns poucos segundos haviam passado a despeito de
ter dormido com certeza algumas horas. Giovanni percebeu que ganhou na
loteria : havia de ter tempo naquela sala de escrever seu artigo.
Colocou sua escrivaninha, livros e laptop para dentro do ambiente
atemporal e escreveu durante dias. Uma coisa que percebeu é que não
sentia fome, nem sede, nem mesmo o sentimento de solidão . Era uma
máquina. Uma produtividade estupidamente assustadora, apenas precisava
deitar de vez em quando, mas provalvemente por hábito do que por
necessidade.
Terminou o
artigo , mas ainda era pouco frente a oportunidade de um local onde o
tempo não passa: queria mais . Pegou todos os livros da sua biblioteca,
e-books, arquivos em PDF e colocou a lê-los, relê-los até decorá-los.
Depois disso produziu uma dezena de artigos e coleção de livros de cunho
inovador. Bem deveria ter passado uns três séculos se fosse o tempo
corrente , mas ali não passava de um átimo de segundo.
Pronto!
C’est fini! A contribuição de Giovanni Kairos e o próprio Giovanni
Kairos haviam revolucionado o mundo e sua vida: um gênio foi formado .
Podia ir agora ao departamento de pesquisa e mostrar à todos o que havia
feito. Saiu,enfim, da sala branca . Foi trocar de roupa e comer algo
calmamente, apesar do atraso do trabalho. Afinal, após todo o seu
estudo e resultado escusariam qualquer falta ou demora frente a um
departamento de pesquisa tacanho.
Faltava
apenas escovar os dentes e ir ao banheiro... e eis que ao abrir a porta
estava de fato lá só o banheiro! A sala branca havia sumido junto com
seus livros , trabalhos e laptop. Giovanni fechou e abriu a porta várias
vezes , mas nada: apenas o banheiro de azulejo rosa e a escova de
dentes largada na pia...
Escovando
os dentes lembrou Giovanni com ironia de uma passagem “ Que sou eu,
afinal? Carne, fraco alento, e alma. Deixa os livros, não te disperseis”
de Marco Aurélio. De mais um dos livros que havia lido na sala e que
se perdeu junto àqueles “anos maravilhosos” . Demitiu-se no mesmo dia e
foi vender coco na praia.
21.10.2011
21.10.2011
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