segunda-feira, 17 de junho de 2013

o misotecnológico



 Seu Bachelard devia estar a caducar. uma merda isso. o velho  era Brilhante. Nunca trabalhou, gastou o resto do dinheiro de duas gerações de industriais,... mas quê! O velho era realmente brilhante. Seu Bachelard tinha livros traduzidos, foi condecorado e o escambau. Estudava história da ciência. Talvez tenha sido excesso de estudo que o ferrou ou talvez fosse sempre um pouco louco. Eis a história do decrepto:
Seu Bachelard estava na biblioteca, estudando  como sempre , quando escutei  um grito : “Thoreau está certo ao avesso! Thoreau deu-me a chave!” . Eu, como bom empregado e como bom cristão fui olhar o que acontecia , mas, quando vi, era só ele eufórico como tantas outras vezes com um livrinho qualquer. Nada demais, pensei, coisa de gente que estuda muito. No outro dia é que comecei a ver a diferença : um sorriso no rosto, uma alegria estranha. Perguntou-me onde havia nascido. Ele sabia que eu era do interior , mas respondi : “ Nasci no município do Cajá, seu Bachelard”. Depois perguntou se a população era pequena . Disse que sim . E assim, de repente, ele me disse: “Nos mudamos para lá hoje!”. O velho era excêntrico , mas me surpreendi com essa novidade: ele morava na praia , na capital  e com toda família dele próxima, não havia sentido ele se mudar. Não o questionei, achei ótimo ir para casa, pretendia fazer isso quando juntasse dinheiro. Melhor para mim.
A mudança foi rápida. O velho comprou um bom sítio por  meu intermédio  e em duas semanas já estávamos lá. Bom era estar na cidade natal. revendo os amigos, a família... e com um emprego! O sítio era bonito, tinha uma parte que era mata nativa e outra de  pasto para boi. Aí que começou o comportamento estranho de seu Bachelard : vestiu uma roupa antiga , uma mistura tosca de cangaceiro e bandeirante, pegou um velho trabuco e disse que ia para mata. Bem, pensei, o velho estava louco! Devia ter desconfiado a mudança repentina. Porém , o pedido  que se seguiu pareceu revestido de bastante seriedade, e de tal modo estava eu feliz na minha terra natal que a aceitei. A conversa breve foi algo mais ou menos assim: “Heriberto Panza, vou fazer um experimento científico que vai exigir de mim um comportamento estranho . Posso tomar sua ajuda e discrição?" . Eu assenti, as frases eram vagas e não sabia no que isso ia dar. Queria era o emprego. E lá foi ele para mata com o trabuco,uma lata de feijão e um machado. Acampou lá. O velho ia toda manhã caçar. Via à distância seu Bachelard, mas este não deixava me aproximar. Com o tempo vi que juntava madeira da mata e começava, fracassadamente a  fazer uma choupana. Demorou aproximadamente uma ano, por tentativa e erro para conseguir fazê-lo. Meus dias passavam tranquilos. Apenas ajeitava a casa principal do sítio e ia para praça conversar com meus amigos de infância. Sempre perguntavam de Seu Bachelard. Eu dizia que ele era um professor muito ocupado fazendo experiências importantes e, por isso, não aparecia na cidade.
Escondia dos meus camaradas minha aflição de ver um homem tão inteligente parecendo um maluco e vivendo como um troglodita. Mas, prometi a seu Bachelard não interferir no seu experimento mesmo pendendo cada vez mais a ligar para o hospício. Depois de um ano e meio ele voltou finalmente para a casa do sítio. Enfurnou-se na biblioteca e foi escrever . passou lá um mês. só escutava as teclas batendo. De vez em quando levava-lhe chá e biscoitos para que o velho não morresse de inanição. Quando saiu da biblioteca pediu-me, para arranjar uma arco e flecha ou algum instrumento rústico. Dei-lhe um facão e uma boleadeira. No Agreste da Paraíba era difícil encontrar uma arco e flecha. Depois disso seu Bachelard voltou para sua choupana perto da mata. Mais dois anos nessa esquisitice. Negava-se completamente as facilidades do mundo moderno e do dinheiro que tinha. Durante dois anos fui inventando desculpas para os parentes e amigos de seu Bachelard não aparecerem. Nem atendia mais o telefone. Decerto deveria ser considerado um daqueles empregados que oprimem e exploram os  patrões senis.
Reparei com , o tempo que a choupana  de seu Bachelard não acendia mais a lamparina. Fiquei desesperado: será que o velho havia morrido na mata? Pedi ajuda  aos meus amigos para fazer uma busca na mata: após oito horas de busca encontrei seu Bachelard nu em pêlo com uma lança atrás de uma codorna. Não teve jeito : chamei o manicômio e notifiquei a família sobre o comportamento dos últimos 3 anos . Após isso e de uma grande bronca que me foi dado pelos familiares ( risco de me processarem etc e tal) soube que Seu Bachelard foi parar numa clínica de repouso , ou seja um manicômio particular ao qual, pouco tempo depois , soube que o velho fugiu, sabe-se lá como.
Passado 5 anos recebi uma carta de seu Bachelard, endereçada de Manaus e que transcrevo agora.
Olá, querido Heriberto Panza,
Escrevo-lhe esta carta porque, entre todos , você é o único que merece explicação em meio ao meu desaparecimento e ao meu experimento de alguns anos na sua terra natal.  Este experimento bem tive eu com uma leitura de lazer na obra Thoreau: Walden. Bem ele dizia que para viver de modo simples seria interessante se inspirar ou pesquisar acerca do modo de vida dos colonos e dos antigos. Obviamente a referência e o intuito dessa citação do Walden era um método para assegurar uma vida tranquila  e retirada. Mas cá pensei em transpor esse método para ciência: se eu utilizar um método regressivo da história não para uma vida mais simples, mas para observar os caminhos que a ciência tomou , posso observar também os caminhos que a ciência ignorou; em outras palavras meu caro Panza, se eu experimentar um vida de colono , bandeirante e homem primitivo posso , já sabendo o caminho tecnológico traçado anteriormente por este tipo , levar a cabo o caminho da tecnologia negligenciado.  Imagine os avanços que poderia descobrir! Bem sei , que o meu experimento tinha grande riscos de fracasso, bem poderia não haver nenhum caminho científico e tecnológico ignorado pelo , por exemplo, o bandeirante nas condições em que se encontrava...Mas se houvesse? e foi nessa hipótese de trabalho( e afinal a ciência começa sempre com hipóteses) que iniciei a labuta.  Refiz-me um bandeirante durante um ano sob aquela mata nativa. Mas não me utilizei dos métodos do bandeirante para viver, fui além com o que se tinha e ignorando o que vinha depois do bandeirante. Veja bem! Quando você me via cansado o exercício era muito mais mental do que físico. Reconstruir um método novo nas condições de tempo dos antigos sem , além do mais, recair em métodos contemporâneas é uma tarefa hercúlea! E assim fui fazendo descobertas inesperadas. Entusiasmei-me com o progresso de tal modo que acabei por  estender meus estudos: ia retornar a modelo pré-colonial  e ver do que desse período extrairia.mas infelizmente você me considerou louco, e cá bem entendo suas razões... talvez eu o tivesse feito o mesmo no seu lugar.
Argumentei com os meus familiares acerca  do meu experimento ,mas de pouco adiantou. visto isso , fugi do hospício. Daí trilhei  rumo ao norte para a amazônia e rumo ao Equador procurando uma tribo yanomami para me ajudar nesses estudos. Decerto esse escrito lhe parecerá mais uma carta de um louco que estudou demais e cá só fala asneiras . Bom, isso cabe a você, mas de toda maneira lhe mando um abajur que não se apaga nunca, fruto dos meus estudos alternativos de óptica daqueles 3 anos em sua terra. Talvez lhe mande posteriormente meu moto-contínuo , já está em fase final. 

Um Grande abraço,

Do seu amigo Bachelard

Vi o abajur, tentei ligar , mas não consegui. Mais uma prova que era doido. Ou talvez não apagasse nunca , simplesmente porque nunca se pôde ligar. Seu Bachelard estava certo numa lógica completamente distinta.Liguei ao mesmo instante para a família de sue Bachelard dizendo que o coitado estava no Amazonas. Às vezes gosto de pensar que  ele está são e salvo fazendo uma cidade futurista com alguns ianomâmis. Tadinho... e que saudade do meu emprego.
31.10.2011

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