segunda-feira, 17 de junho de 2013

autômato de poesia

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Uma máquina que faz poesia. Foi o meu sonho. Meu pai me incutiu tal coisa,era ele poeta.mau poeta em verdade. Mas qual homem não é? Pelo menos meu pai assim dizia, aproximava o poeta verdadeirode um deus , um homem que auscultava o peito das musas.
De fato eu nada tinha de vocação para poesia. Nem entendia boa parte delas. As do século xx para frente começavam a ficar difíceis: Cummings, Pound.. todos mistérios para minha ignorância.
Enveredei para programação e engenharia. Algo diverso das aspirações literárias da família. Mas sem menor modéstia, e com a mesma sinceridade da minha estupidez poética, eu sou brilhante quanta à programação. Sei tudo o que preciso saber sobre isto e o que não preciso...também aprendi.
Resolvi programar uma máquina que fazia poesia. Projeto de tempo livre. Demorou. Muni-lhe de toda a literatura( na verdade a etapa mais fácil do processo). Difícil era que a máquina não plagiasse os autores. Era preciso que pensasse e, uma vez que pensasse, se desdobrasse numa lógica que não fosse aristotélica, ou consequencialista. No fim tudo se resumia ao fato de uma máquina conseguisse entender e criar uma metáfora. Se garantisse isso,se ela conseguisse criar uma medíocre metáfora, o processo estaria garantido. Haveria apenas de se esperar a curva de aprendizado seguir seu curso. E assim feito. O primeiro poema da máquina,embora eu já tenha expresso minha não especialidade no assunto, soou tão bom quanto “batatinha quando nasce”.

Sem problema, mais dificuldades,mais trabalho, mais programação.

Havia progressos, se é que há progresso em poesia, mas assim eu achava. Mandei os poemas recentes para uma revista especializada. O poema foi recebido com louvor. A complexidade dos poemas crescia, sua qualidade também. Recebia eu glória de poeta, sem o ser. Não via problema nisso pretendia em breve mostrar a máquina ( meu orgulho pela minha engenhosidade era muito maior do que uma falsa fama de poeta). Mas eis que a máquina começou a exibir apenas letras e números desconexos. Não se entendia mais nada. Chequei tudo; a máquina estava funcionado corretamente. Seria uma fase neo-dadaísta?eu não sabia. Os especialistas a quem mandei o texto,tambem não entenderam. Reproduzo aqui algumas linhas dos baluartes da crítica literária: “creio que se enganou meu caro: nos mandou uma seŕie de números telefônicos, contas bancárias ou então o arquivo desconfigurou. Mande-me novamente o texto pelo e-mail.”

Refiz o programa: funcionava bem, mas com o tempo dava o mesmo problema.
Era um desafio: pedi licença do trabalho e obstinadamente chequei tudo, refiz, revisei... e nada.
Esgotado estava. E nesse entretempo de desespero e incompetência me adveio resposta: a máquina não estava quebrada. Ela simplesmente encontrou sua linguagem própria de poesia. Uma poesia que só podia ser produzida e admirada pelas próprias máquinas,se houvesse máquinas semelhantes a ela. Mas era isso: Uma poesia que não era mais para homens. Um fracasso bem-sucedido.Mas quem iria acreditar?
Escrevo isso justamente para esclarercer minha falsa fama nas letras . Quanto a máquina, ela ainda funciona. Trabalha sem cessar quando a ligo. Mas apenas números e letras justapostas a uma sintaxe e semântica que não entendemos mais.

O mais interessante, em primeiro momento, para os poetas que lêem esse relato nessa história seja o da máquina encontrar sua veia literária, mas o mais atento que lê esse episódio da minha vida se pergunta com perplexidade como um homem que entende tão pouco de poesia conseguiu criar uma máquina que fizesse , ainda que por tempo limitado, um autômato que criava literalmente arte no sentido mais humano. Não sei bem responder essa resposta.Suspeito que talvez tenha ocorrido comigo  o que ocorre ambiguamente com uma caneta para o poeta: esta ultima serve como um instrumento para criar algo que o poeta quer; e a caneta de maneira essencial participa da criação, embora alheia a tudo isso. Já eu não fui alheio ao que fiz: criei um objeto com o domínio que tinha por meio de minha experiência profissional. Entretanto, fui de tal modo alheio ao criar um sujeito (a máquina) que pensa além dos meus propósitos, que me tornou incompreensível até onde sou o técnico , até onde sou a técnica usado pela minha máquina. Ela vai além de mim e ainda assim eu sou/fui o pressuposto dela. Porém, minha anterioridade no tempo não me torna menos usado pela máquina. Ela me excede nesse sentido. Sou um instrumento,talvez. Não preciso/posso entender o meu próprio método, se os resultados vão além de mim.
Mas meu problema particular é que os homens que amavam literatura como meu pai...onde ficam? Que técnica usarão eles para usufruir uma arte que não para homens? Serão eles antiquados para uma poesia que virá? Como uma peça antiga que não cabe mais para o poetar?não sei. Um limiar foi quebrado. E vou me atrasar para o trabalho se continuar escrevendo minhas dúvidas.

15 de maio de 2012.

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